Prezados leitores(as), a convite do querido Aguinaldo Aníbal – ao qual agradeço publicamente o convite – inicio hoje uma série de textos sobre o tema da saúde sob a visão do Direito. As discussões jurídicas em relação a saúde fazem parte da minha vida por uma série de motivos, destaco especialmente um deles: faço parte, com muito orgulho, do departamento jurídico da Casa Guido – Grupo Pela Unidade
Infantojuvenil de Onco-Hematologia. Foi nesta instituição, há quase 10 anos, o meu primeiro contato com aquilo que seriam hoje as discussões na área da saúde. Foi conhecendo o trabalho da Casa Guido que me deparei com situações que jamais imaginei. Foi o convívio com crianças e adolescentes diagnosticados com câncer, as suas famílias, os voluntários da instituição, os profissionais da saúde, outros advogados e advogadas que me despertou o interesse para aprender mais sobre a saúde e as implicações no Direito.
Assim, a minha vida profissional trouxe uma série de debates que pretendo compartilhar neste espaço privilegiado. Gostaria de iniciar o primeiro texto fazendo uma justificação. Sinceramente, gostaria de falar sobre muitos assuntos afetos ao tema saúde/direito, porém, infelizmente, não posso me afastar da realidade ou muito menos posso negá-la. O surto do novo coronavírus cobiça uma espécie de atenção especial. É o assunto do momento e assim deve ser. E é por isso que pretendo iniciar este espaço com a análise dos reflexos desta pandemia no Direito (ou seria o contrário?). Sem citar legislações aos montes (pelo menos vou tentar!), artigos aos cantos, esse primeiro contato é de localização. Após situarmos o debate poderemos, nos próximos textos, enfrentar melhor alguns temas específicos.
Praticamente todos os ramos do conhecimento estão debatendo, dentro das suas especificidades, o que pode ser realizado nessa situação atípica. No Direito, inúmeras áreas também precisaram iniciar um novo debate. Por exemplo, no Direito do Trabalho os debates são travados em relação a manutenção dos empregos; no Direito Civil a manutenção das obrigações dos contratos de aluguel; no Direito do Consumidor discute-se o cancelamento de pacotes de viagens, passagens áreas; no Direito de Família são as visitas dos filhos de pais separados diante do isolamento social; na área penal a saída de presos que estão em grupos de risco; enfim, uma série de debates em cada área jurídica.
Um desses desafios envolve a área de atuação direta ao combate do novo coronavírus: a saúde. É nesse campo que desejo iniciar um pequeno debate sem a intenção de esgotá-lo diante da sua importância. Na área da saúde o Direito se depara também com uma série de ramificações dessa nova situação. São os temas relacionados as competências dos municípios para legislar, a gestão financeira da Administração Pública para enfrentamento do surto, o cuidado post mortem das vítimas, a transparência nas informações, a estruturação física e de pessoal para o enfrentamento, por exemplo.
Dentro desses temas, ainda no intuito de situar o nosso debate, podemos localizar aqueles afetos aos profissionais da saúde. Essa categoria de trabalhadores compõe a linha de frente no combate a pandemia e merece toda atenção do Direito e das demais áreas. São esses profissionais que trabalham nos hospitais, nas unidades básicas e de pronto atendimento que convivem diariamente com a ausência de recursos e insumos e um número crescente de infectados e mortos. Diante disso, falar sobre novas situações normativas em relação aos profissionais da saúde talvez seja um assunto interessante para o início.
Comecemos, portanto, falando de 3 (três) temas: a telemedicina, os trabalhadores da saúde em grupos de risco e o sigilo médico.
O primeiro tema envolve a utilização da telemedicina, ou seja, a prática da medicina a distância, sem o contato o físico, justificável nesse período de isolamento. O Conselho Federal de Medicina (CFM) regulamentou a prática em ofício (n. 1.756/20, de 19/03/2020[1]) encaminhado ao então Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Referido documento permite expressamente a prática da telemedicina, em caráter excepcional e enquanto durar o combate ao contágio do novo coronavírus, de três formas específicas:
- Teleorientação, para que profissionais da medicina realizem à distância a orientação e o encaminhamento de pacientes em isolamento.
- Telemonitoramento, ato realizado sob orientação e supervisão médica para monitoramento ou vigência à distância de parâmetros de saúde e/ou doença.
- Teleinterconsulta, exclusivamente para troca de informações e opiniões entre médicos, para auxílio diagnóstico ou terapêutico.
Posteriormente, o presidente da República sancionou, com vetos, a Lei que estabelece a utilização da telemedicina durante a pandemia (Lei 13.989[2]).
Outro tema que gera importantes discussões diz respeito aos trabalhadores da área da saúde que estejam em grupos de risco. Sabe-se que os grupos de risco que podem ser mais afetados pelo novo coronavírus são aqueles compostos por pessoas acima de 60 anos (com ou sem comorbidades), aqueles que possuem diabetes, hipertensão, asma, dentre outros.
A recomendação emanada do Conselho Federal de Medicina é que os profissionais da saúde em grupos de risco sejam afastados ou realocados em outra função. Em relação a profissionais da saúde específicos, como no caso dos servidores públicos federais, o governo brasileiro expediu a Instrução Normativa nº 19/SIPEC/ME de 12/03/2020 – IN, atualizada pela Instrução Normativa nº 20/SIPEC/ME, de 13/03/2020 e 21/SIPEC/ME, de 17/03/2020. A Instrução Normativa nº 21/SIPEC/ME, precisamente no art. 4º-B (tópico “Hipóteses específicas de trabalho remoto”), prevê que as pessoas em grupos de risco, considerando a vulnerabilidade da situação, deverão executar suas atividades remotamente enquanto perdurar o estado de emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do novo coronavírus (COVID-19).
É preciso um cuidado incessante com esses profissionais que trabalham no front dessa guerra. O direito à saúde (analisado individualmente) deve ser sopesado com o risco a coletividade. Os casos devem ser analisados individualmente e a ponderação e temperança devem reinar na análise dos riscos e benefícios.
Outro tema interessante nesse contexto e com íntima ligação ao Direito é o sigilo médico em relação aos casos de suspeita ou confirmação do contágio pelo novo coronavírus. Esse tema com certeza vai merecer melhores apontamentos em outro momento, inclusive diante da polêmica envolvendo o Presidente da República e a divulgação do seu exame.
Via de regra, em razão do direito constitucional à intimidade (art. 5º, X, da Constituição Federal) é vedado aos profissionais da área da saúde divulgarem as informações de pacientes sem o devido consentimento. A regra do sigilo médico somente poderá ser quebrada se o diagnóstico em questão fizer parte da lista da Portaria n. 204, do Ministério da Saúde, que define a “Lista Nacional de Notificação Compulsória de doenças, agravos e eventos de saúde pública nos serviços de saúde públicos e privados em todo o território nacional”.
Nos casos presentes na lista a notificação é obrigatória (compulsória). São casos de notificação compulsória, por exemplo, o acidente de trabalho, o diagnóstico de vírus Zika, febre amarela, tuberculose e, adicionado recentemente, “Síndrome Respiratória Aguda Grave associada a Coronavírus a. SARS-CoV b. MERS- CoV” (item 43). No caso de suspeita/confirmação pelo novo coronavírus o médico terá o dever de notificar as autoridades competentes sob pena de incidir em crime (art. 269, do Código Penal). Ainda, o Código de Ética Médica, no seu art. 73, garante a excepcionalidade do encaminhamento das informações diante do dever legal de notificar, como no presente caso.
Na atual situação de pandemia essa relativização do sigilo médico é corroborada até pela necessidade de as próprias pessoas informarem as autoridades sobre o contato com os agentes infecciosos. A Lei n. 13.979/20[3] revela que “Toda pessoa colaborará com as autoridades sanitárias na comunicação imediata de possíveis contatos com agentes infecciosos do coronavírus e circulação em áreas consideradas como regiões de contaminação pelo coronavírus.” (art. 5º, incisos I e II).
No mesmo sentido, mas agora voltado para os órgãos da Administração Pública, a Lei n. 13.979/20 informa que é “(…) obrigatório o compartilhamento entre órgãos e entidades da administração pública federal, estadual, distrital e municipal de dados essenciais à identificação de pessoas infectadas ou com suspeita de infecção pelo coronavírus, com a finalidade exclusiva de evitar a sua propagação.” (art. 6º).
Pensar de forma diversa poderia comprometer a organização da Administração Pública na medida em que é preciso ter amplo conhecimento dos casos suspeitos/confirmados para estruturar as políticas públicas de combate ao novo coronavírus.
Por fim, mas não menos importante do que os outros temas debatidos, são os conhecimentos de utilidade pública que transcendem qualquer campo de conhecimento específico e hoje são valiosas informações para o enfrentamento do momento que vivenciamos. Devemos seguir as orientações dos profissionais da saúde e do Poder Público, dentre elas: lavar as mãos frequentemente, utilizar álcool em gel 70%, manter o distanciamento social e, se for possível, ficar em casa, afinal, como diria o grande cantor italiano Vasco Rossi, viver também é “um pouco como perder tempo”[4] e, ao final, “amanhã, um outro dia, chegará.”[5]
Links úteis para consulta:
– https://coronavirus.saude.gov.br/
– https://www.sc.gov.br/noticias/temas/coronavirus
– http://covid19.criciuma.sc.gov.br/
[1] Que complementa a Resolução CFM nº 1.643/2002, que define e disciplina a prestação de serviços através da Telemedicina.
[2] http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-13.989-de-15-de-abril-de-2020-252726328
[3] Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019.
[4] Vivere (viver) – Vasco Rossi: Vivere/È un po’ come perder tempo…
[5] Un Senso (um sentido) – Vasco Rossi: Domani un altro giorno arriverà…