O último habitante da terra e a função de um Juiz

O caso repercutiu em Criciúma e no Brasil. O resumo da história é simples: cidadão foi notificado pela não utilização de máscara. Impetrou Mandado de Segurança no Poder Judiciário solicitando fosse garantido “(…) o direito de andar livremente sem máscaras, alegando ilegalidade e inconstitucionalidade das normas municipais que obrigam ao cidadão criciumense circular com máscara protetiva sob pena de multa.” O cidadão afirmou que o uso obrigatório de máscara seria inconstitucional. 

O Juiz de Direito Pedro Aujor Furtado Junior, da 2ª Vara da Fazenda Pública de Criciúma, proferiu decisão, em caráter liminar, indeferindo o pedido. Os fatos marcantes dizem respeito aos fundamentos que o Juiz utilizou para negar o pedido liminar.

Seguem alguns trechos da decisão:

Fosse o impetrante o último e único indivíduo morador de Criciúma (ou afinal o último habitante do planeta, uma vez que se cuida de pandemia e como o próprio nome sugere trata-se de uma epidemia global) não haveria o menor problema para que o mesmo circulasse livremente sem máscara e ficasse exposto ao vírus Covid-19 (ou a qualquer outra moléstia letal transmissível) por sua livre e espontânea vontade, uma vez que não transmitiria seus males para quem quer que seja.

(…)

Todos querem a liberdade, mas seus limites encontram-se na liberdade de outrem não querer ser exposto ao vírus de o qual o impetrante pode sim ser portador (o mesmo não apresentou com a impetração prova de que é soro-negativo ao Covid-19, lembrando que o mandado de segurança exige prova pré-constituída)

(…)

E arrematou assim o Juiz da 2ª Vara da Fazenda Pública de Criciúma: Recomenda-se pois ao impetrante que use a máscara.”

Alguns criticaram a decisão do Juiz, entre eles, obviamente, o autor. Não se pode tentar reprimir a crítica dessas pessoas a pretexto de buscar argumentos para concordar com a decisão do Juiz. A crítica é válida (sempre!) de qualquer dos lados.

            O que talvez fique obscuro da população em geral é descobrir que o papel de um Juiz não se resume em aplicar friamente a Lei. A função do juiz é resolver os litígios mediante aplicação da Lei mas com atenção, caso a caso, de diversos fatores (sociais, econômicos, políticos, jurídicos, etc.) que influenciam em tal processo. Os livros clássicos do Direito assim orientam. Não é outra a lição de Calamandrei[1] (1999, p. 183):

 
Não basta que os magistrados conheçam com perfeição as leis tais como são escritas; seria necessário que conhecessem igualmente a sociedade em que essas leis devem viver.
 
               Cappelletti[2] (1993, p. 105) é magistral ao afirmar que:
 
[...] embora a profissão ou carreira dos juízes possa ser isolada da realidade da vida social, a sua função os constrange, todavia, dia após dia, a se inclinar sobre essa realidade da vida social, pois chamados a decidir casos envolvendo pessoas reais, fatos concretos, problemas atuais da vida. 
Slaibi Filho[3] (2000, p. 444/448) traz, novamente, importante lição ao ensinar que “[...] o juiz tem o dever moral e jurídico de não ser o ‘conviva de pedra’, mesmo porque não se despe de seus caracteres humanos. [...] Ao juiz basta incorporar seu espírito à sentença, pois ela expressa seu sentimento de justiça.”
 
O juiz é um ser social, inserido em determinado agrupamento social, dotado de conceitos éticos e morais, e a sentença é um conglomerado de todos esses fatores: a norma jurídica aplicável ao caso, o contexto social da norma, os conceitos éticos e morais do juiz, etc.
 
Ao final, a decisão do Juiz da 2ª Vara da Fazenda Pública está aberta a receber críticas? Sempre! 
 
É função de um Juiz analisar um caso diante de um contexto que ultrapassa somente aquilo o que diz a Lei? Sempre! 
 
A decisão moral e final é cada um de nós? Sempre!

[1] CALAMANDREI, Piero. Direito processual civil. Tradução de Luiz Abezia e Sandra Drina Fernandes Barbiery. Campinas: Bookseller, 1999.

[2] CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Tradução de Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Porto Alegre: Serio Antonio Fabris Editor, 1993.

[3] SLAIBI FILHO, Nagib. Sentença Cível: fundamentos e técnica. Rio de Janeiro: Forense, 2000.

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